O mundo do trabalho evolui de forma constante, impulsionado por avanços tecnológicos, novas dinâmicas organizacionais e a flexibilização crescente das relações laborais. Nesse cenário, o artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que regulamenta as exclusões de controle de jornada, tem demonstrado sinais de desatualização e inadequação à realidade atual.
O Que Prevê o Artigo 62 da CLT?
O artigo 62 da CLT estabelece que determinadas categorias de trabalhadores não estão submetidas ao controle de jornada e, consequentemente, não têm direito a limitações de horários nem a horas extras. Entre essas categorias, encontram-se:
- Cargos de confiança: Trabalhadores que exercem funções de gestão, como gerentes e diretores, desde que recebam gratificação de pelo menos 40% sobre o salário do cargo efetivo.
- Trabalhadores externos: Empregados cujas atividades são desempenhadas externamente, tornando inviável o controle de horários (por exemplo, vendedores externos).
- Teletrabalhadores (Home Office): Após a Reforma Trabalhista de 2017, esses profissionais foram incluídos no artigo 62, sem exigência de controle de jornada.
Essas exclusões foram criadas para atender situações em que medir a duração do trabalho seria inviável ou incompatível com a prática. Entretanto, com a digitalização e as mudanças nas organizações, esses pressupostos precisam ser reavaliados.
A Realidade Tecnológica e Seus Impactos
A massiva adoção de tecnologias digitais, acelerada pela pandemia de COVID-19, trouxe mudanças profundas ao mundo do trabalho. Ferramentas como geolocalização, softwares de monitoramento de produtividade, aplicativos de trabalho e sistemas de check-in/check-out tornaram o controle de jornada viável até mesmo para categorias antes consideradas “incontroláveis”.
O teletrabalho, que antes era exceção, tornou-se regra em muitas empresas, e os trabalhadores externos passaram a depender de celulares, aplicativos e plataformas digitais para desempenhar suas funções. Dessa forma, a alegação de incompatibilidade para medir jornadas perdeu solidez na prática.
Decisões recentes de tribunais trabalhistas reforçam essa percepção. Por exemplo, no caso de vendedores externos, a jurisprudência tem constatado que rotas monitoradas por aplicativos e reuniões organizadas virtualmente permitem o controle total da jornada. Com tecnologias disponíveis, o argumento de “incontrolabilidade” se torna cada vez menos aceitável.
Os tribunais trabalhistas têm reavaliado os limites estabelecidos pelo artigo 62 da CLT à luz das novas dinâmicas tecnológicas.
Decisão recente do TST, afastou a aplicação do artigo 62, I, da CLT a um trabalhador externo cujo horário poderia ser monitorado por meio de aplicativos móveis. Constatou-se que, ao usar ferramentas como check-ins digitais e relatórios encaminhados pela chefia, a empresa poderia aferir as horas trabalhadas, invalidando o argumento de controle impraticável. Veja o trecho da decisão:
“A premissa fática delineada no acórdão regional […] é de que, na hipótese, o autor poderia ter sua jornada controlada pela ré, situação que efetivamente ocorria pelo aplicativo do celular, pelos check-in/check-out, pelas rotas estabelecidas pela chefia e pelas reuniões de prospecção […], motivo pelo qual afastou a exceção prevista no art. 62, I, da CLT.” (TST, Ag-RRAg: 0000314-55.2022.5.09.0015, Relator: Breno Medeiros, Publicado em: 13/10/2023)
Além disso, decisões acerca de cargos de confiança têm examinado com maior rigor a aplicação do artigo 62, exigindo o cumprimento do requisito objetivo da percepção da gratificação de 40%. A ausência desse pagamento, independentemente das atividades realizadas, tem invalidado a classificação de cargo de confiança em muitos casos, como podemos verificar com a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 9º Região:
HORAS EXTRAS. ART. 62, II, DA CLT. CARGO DE CONFIANÇA. REQUISITOS. Para o empregado ser enquadrado na exceção do art. 62, II, da CLT é fundamental o preenchimento de dois requisitos, quais sejam: a percepção de acréscimo salarial não inferior a 40% (quarenta por cento) do cargo efetivo (elemento objetivo) e a demonstração do exercício de cargo de gestão, com prerrogativas decorrentes de especial fidúcia creditada pelo empregador (elemento subjetivo), o que não é o caso dos autos. Recurso do réu conhecido e não provido. (TRT-9 – ROT: 00012205920235090872, Relator.: LUIZ EDUARDO GUNTHER, Data de Julgamento: 22/08/2024, 7ª Turma)
Um ponto de preocupação importante é o risco de que empregadores utilizem o artigo 62 para classificar trabalhadores como “externos” ou “teletrabalhadores” de maneira indevida, visando escapar de obrigações trabalhistas. Tal prática colocaria em risco a proteção de trabalhadores e poderia ampliar abusos no ambiente laboral.
As decisões recentes do Tribunal Superior do Trabalho – TST têm ressaltado que, mesmo nos casos de acordos e negociações coletivas, é preciso respeitar os direitos fundamentais e garantir equilíbrio entre flexibilidade e proteção jurídica.
O artigo 62 da CLT, embora tenha atendido seu propósito no momento de sua criação, já não reflete as dinâmicas do trabalho contemporâneo. A tecnologia tornou possível monitorar e controlar a jornada em quase todos os contextos. Assim, uma reinterpretação da norma, alinhada às transformações atuais, é essencial para assegurar que o equilíbrio entre modernização, flexibilidade e direitos trabalhistas seja mantido.
O papel do Judiciário seguirá sendo fundamental para adaptar a legislação à realidade tecnológica sem comprometer a proteção dos trabalhadores.










