A (in)viabilidade do Imposto sobre Grandes Fortunas
Muito tem-se discutido sobre a reforma tributária no Brasil, especialmente com o agravamento da crise econômica provocado pela pandemia de Covid-19. Além da unificação de alguns tributos como ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS, há propostas para alterar o Imposto de Renda que versam sobre a ampliação da tributação sobre a renda, bem como alteração nas alíquotas e isenções vigentes.
Nesse embate, a tributação sobre grandes fortunas também emerge. Não faltam especialistas favoráveis e também os contrários à instituição do imposto sobre grandes fortunas, o IGF. No Senado Federal, por exemplo, existem seis iniciativas em tramitação: PLP 183/2019, PLP 125/2021, PLP 50/2020, PLP 315/2015, PLP 101/2021, PLP 38/2020.
Se de um lado há argumentos aduzindo que esse modelo de tributação não prejudica a economia, eis que os trabalhadores, a indústria e o mercado não serão taxados, de outro, há aqueles que pregam que haverá uma fuga de investidores do país.
Antes de aprofundar a discussão, mister caracterizar alguns tributos que, em princípio, incidem sobre a fortuna – termo aqui tomado em sentido amplo como acumulação de patrimônio.
No Brasil, há alguns impostos que versam sobre a tributação da riqueza e propriedade da pessoa física, como os impostos incidentes sobre a renda (IRPF), propriedade urbana (IPTU), propriedade rural (ITR), veículos (IPVA), entre outros.
Destacamos o Imposto de Renda sobre Pessoa Física – IRPF e o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, eis que o primeiro se refere diretamente à renda e o outro, ao recebimento de bens por doação ou herança. Ambos os tributos foram devidamente regulamentados pela legislação infraconstitucional, sendo o IRPF exigido pela União e o ITCMD pelos Estados, conforme a competência instituída pela Constituição Federal. O primeiro, nos moldes do artigo 43 do Código Tributário Nacional – CTN, incide sobre a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica, isto é, a renda e demais proventos que caracterizam o acréscimo patrimonial. Já o segundo, cuja previsão encontra-se no artigo 35 do código supracitado, tem como fato gerador a transmissão ou cessão de direitos referente a bens imóveis.
Promulgada em 1988, a Constituição Federal já trouxe a possibilidade de a União, além de tributar a renda, instituir imposto sobre grandes fortunas em seu artigo 153, inciso VII.
A lei complementar para regulamentar o IGF, no entanto, jamais foi editada. Agora, com a crise e na iminência da reforma tributária, o tema voltou a ser discutido sob o argumento de que a tributação vigente é proporcionalmente menos onerosa para os mais ricos, bem como as distorções sociais, as quais seriam ocasionadas pelo acúmulo de riqueza nas mãos de poucos privilegiados, são um entrave ao desenvolvimento do país.
Destaque-se que dentre os projetos em tramitação no Senado, três (PLP 38/2020, PLP 50/2020 e PLP 101/2021) instituem o imposto por tempo determinado apenas como forma de aumentar a arrecadação a fim de disponibilizar mais recursos para o combate à pandemia. Já nos demais, o imposto será devido anualmente e terá como base de cálculo o patrimônio líquido.
Os projetos de lei definem alíquotas progressivas, iniciando-se em 0,5% até 1%. As propostas, contudo, divergem quanto ao conceito de grande fortuna: o PLP 315/2015 considera que deverá contribuir quem tiver patrimônio líquido superior a 50 milhões de reais; para o PLP 38/2020, contribuinte é o titular de patrimônio líquido que exceda a 50.000 salários mínimos; o PLP 183/2019 apresenta outro critério: possuir patrimônio líquido de valor superior a 12.000 vezes o limite mensal da isenção para pessoa física do imposto de renda, hoje estabelecido em R$ 1.903,98.
Não obstante, importante observar a experiência internacional, a qual nos mostra que o IGF representa pouco acréscimo na arrecadação e não resolve o problema da desigualdade na distribuição de renda.
Segundo o estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, The Role and Design of Net Wealth Taxes in the OECD, a arrecadação do IGF representa uma parcela muito pequena da receita advinda da arrecadação de impostos. Na Suíça, país considerado modelo na instituição do IGF e com as maiores taxas, somente 3,7% do total de tributos arrecadados são provenientes do imposto sobre grandes fortunas.
Não é opção em vários países
O estudo indica ainda que houve redução no número de países que cobram o imposto sobre grandes fortunas. Em 1990, eram 14 países. Atualmente, dos membros da OCDE, somente França, Noruega, Espanha e Suíça ainda o cobram. Ressalte-se que a Espanha voltou a instituir o IGF após a crise de 2008 como uma tentativa temporária para reequilibrar as finanças.
A maioria dos países não opta pela tributação de grandes fortunas devido à complexidade na apuração do imposto devido, eis que se faz mandatória a constante avaliação dos ativos.
Vale lembrar que no caso do Imposto de Renda, por outro lado, o tributo incide sobre os rendimentos tributáveis e, em resumo, quando ocorre lucro na venda de bens e sobre operações financeiras, não havendo, portanto, a incumbência, como no caso do IGF, de se trazer a valor presente todo o patrimônio do contribuinte, descontando-se a depreciação, os montantes despendidos com demais impostos (IPTU, por exemplo) e custos de manutenção.
Um ponto que também traz complexidade para mensurar grandes fortunas diz respeito à obrigação de avaliação periódica de objetos de arte, coleções raras, joias, patentes de invenção, direitos autorais e outros bens imateriais que também constituem o patrimônio da pessoa física.
Além da dificuldade para se calcular o montante devido e fiscalizar as declarações, tais atividades podem representar um verdadeiro ônus para a administração pública, inclusive com aumento expressivo em seu gasto. Ademais, a experiência internacional mostra que os investidores tendem a transferir seus ativos financeiros para os chamados paraísos fiscais, reduzindo os investimentos nos países com alta carga tributária.
Observa-se, portanto, que a instituição do IGF parece ser menos interessante e não resolve o problema para reduzir as distorções na capacidade contributiva entre os contribuintes. Vale lembrar que hoje a tributação sobre o consumo impacta de modo mais significativo os menos abastados do que os mais ricos. Talvez seja por isso que os países com menos desigualdades sociais tendem a tributar diretamente a renda de modo mais equilibrado e se utilizam de formas mais simples de tributação sobre o consumo, como o IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), que reduz a complexidade do sistema tributário com a incorporação de vários tributos em um só, resultando em uma carga tributária mais baixa. Segundo estudo do Banco Mundial, o Brasil está entre os países que mais gastam horas de trabalho para preparar, declarar e pagar impostos, o que nos revela a complexidade do nosso atual sistema tributário.
A instituição de novo tributo sem uma discussão séria com a participação da sociedade, avaliando-se os riscos, estudando alternativas e observando as experiências internacionais, pode, portanto, acarretar impactos indesejáveis na economia, agravando-se ainda mais os problemas que se buscava solucionar.
Assim, se de um lado há a inadiável necessidade de redistribuição da renda, não se pode fazê-la simplesmente com a instituição de mais um imposto sobre o patrimônio, sem nenhuma contrapartida na redução ou extinção de outros tributos, sob pena de agravar ainda mais as distorções sociais em virtude da falta de investimentos privados no país.
* Marília Boczar é advogada na área Tributária do FCQ Advogados, possui MBA em Administração de Empresas com ênfase em Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. É graduada em Direito e Jornalismo pela PUC-Campinas e em Letras pela Unicamp. Atualmente, é aluna do Mestrado da Unicamp.
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